A pessoa TRANS no esporte competitivo: encontrando equilíbrio entre inclusão e “fairness”

Atualmente existem cerca de 1,6 milhões de pessoas trans apenas nos EUA. Dados nacionais são escassos, mas sabemos que se trata de um número também bastante expressivo. Para essa população, o esporte pode representar um instrumento de inclusão e, sem dúvida, é missão de todo profissional da área da saúde lutar por isso. Quanto a isso, não existe polêmica. A questão é: como fazer para que homens e mulheres trans possam competir no nível de elite sem ferir um dos princípios olímpicos clássicos de fairness? Em outras palavras: como manter a justiça esportiva nesse cenário, quando falamos de mulheres trans, em especial? É nesta subpopulação que reside a maior discussão e, por conta disso, no blog de hoje vamos nos concentrar nesse grupo específico.

Premissas

Algumas premissas que devem nortear esta discussão:

Faltam estudos em quantidade e qualidade adequadas que possam ser utilizados para uma tomada de decisão razoável. Em especial, estudos em pessoas trans atletas de alto desempenho.

Apesar de sabermos que o desempenho esportivo é multifatorial, o fator-chave para a diferença de performance entre os sexos masculino e feminino é a concentração sérica de testosterona.

O sexo e o gênero são multidimensionais. Sendo assim, o modelo dicotômico-binário de separação de atletas em apenas duas categorias é insatisfatório. No entanto, como fazer de outra forma? Difícil, né?

Evolução histórica das regras impostas pelo COI – Comitê Olímpico Internacional

Ao longo do tempo, o COI vem modificando as regras que balizam as categorias esportivas. Até 2003, exigia-se a gonadectomia dos atletas trans. Em 2015, a referida entidade passa a definir um cut-off abaixo do qual a mulher trans precisa estar para fazer jus à categoria feminina. Ou seja, passa a ser necessária a comprovação de níveis de testosterona sérica abaixo de 300 ng/dL. Vale lembrar que o limite superior de normalidade para a mulher cis gênero é de até 75 ng/dL. Cria-se então a possibilidade de mulheres trans com níveis suprafisiológicos de testosterona (entre 75 e 300 ng/dL) competirem com mulheres cis. A última regra, vigente a partir 2021, gira em torno de um frameshift – um conjunto de 10 princípios (tabela 1) norteadores. O COI optou por deixar na mão das federações de cada modalidade a responsabilidade pela definição da regra esporte específica, desde que sejam respeitados os tais princípios. Vamos ver no que isso vai dar…

Tabela 1 – Princípios norteadores definidos pelo COI

1. Inclusão
2. Prevenção de dano
3. Não discriminação
4. Justiça (fairness)
5. Não presunção de vantagem
6. Stakehold Centered Approach
7. Autonomia corporal
8. Revisões periódicas
9. Preponderância da saúde
10. Evidence-based approach

 

Impacto da terapia de afirmação de gênero (TAG) MALE to FEMALE (homem → mulher) sobre a performance esportiva

A TAG, em mulheres trans, consiste em geral no uso de uma droga antiandrogênica e de algum tipo de estrogênio sintético, o que, na verdade, já vai produzir perda de desempenho. Mas… será que essa piora de performance se dá de imediato? Quanto tempo precisa transcorrer para isso acontecer? Quantos anos são necessários para que esse efeito iguale as mulheres trans com as cis? Alguns estudos mostram que, mesmo após 4 anos de TAG, persistem algumas vantagens competitivas a favor das mulheres trans quando comparadas as mulheres cis.

Segundo a Endocrine Society, o alvo de tratamento para mulheres trans é atingir e manter níveis de testosterona sérica abaixo de 50 ng/dL. Cria-se então a possibilidade de termos uma pessoa considerada fora da meta terapêutica, porém apta para competir. Em outras palavras: um indivíduo inadequadamente tratado, mas que pode participar de provas de nível olímpico ou mundial. Me parece um contrassenso.

Efeito legado

Uma pergunta que precisa ser feita sempre é a seguinte: a terapia hormonal cruzada foi iniciada antes ou depois da puberdade? Isso, muito provavelmente, vai fazer diferença. Por quê? Pois algumas alterações corporais não devem “reverter”, mesmo após muitos anos de tratamento. Ex: a estatura e o comprimento dos membros.

O coração do homem cis é maior do que o coração da mulher cis. O mesmo vale para o tamanho do pulmão e das vias aéreas. E isso é vantajoso em termos esportivos. O volume sanguíneo circulante também é maior nos homens.

Com isso, a pergunta que fica é: existe um efeito legado, fruto da exposição a níveis masculinos de testosterona na puberdade a favor da mulher trans?

Conclusão

A conclusão é de que: NÃO HÁ CONCLUSÃO para esse assunto hoje! Há muito o que se avançar em termos de estudos científicos que auxiliem na tomada de decisão nessa área. A única certeza que temos é que:

1) o esporte é muito importante para a saúde física e mental da população trans – exatamente igual a população cis;

2) não existe resposta certa e muito menos resposta fácil para esta pergunta; e

3) todos nós precisamos nos despir de todo e qualquer preconceito!

Bons treinos e até a nossa próxima coluna!

 

Referências bibliográficas:

Nokoff NJ, Senefeld J, Krausz C et al. Sex Differences in Athletic Performance: Perspectives on Transgender Athletes. Exerc Sport Sci Rev 2023;51(3):85-95.

Chiccarelli E, Aden J, Ahrendt D et al. Fit transitioning: when can transgender airmen fitness test in their affirmed gender? Mil Med 2022;usac320.

04/09/2023

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